STATIONCRITIC: Em ''AFRODITA'', o grito de guerra de Zahara Luzon é ouvido, porém, ao lado das pessoas erradas.

  • 05
  • dezembro

    2017

No finalzinho de 2015, uma novata entrou na Radio Station Virtual com uma música de caráter político, onde a intérprete simulava uma conversa dela própria com Deus, pedindo para que ele tivesse misericórdia do seu povo, pois eles seriam devastados caso uma guerra viesse à tona. Essa novata era Zahara Luzon e a música era "Devoções" que, inclusive, a deu seu primeiro e único Grammy até o momento.

Zahara, que ainda pode ser considerada uma novata, não fez uma grande promoção da música em questão, apesar da ótima recepção que ela teve por parte do público, e sumiu do mundo virtual por bastante tempo até retornar no início desse ano com o carro-chefe do seu primeiro álbum, o smash hit "Pele Preta".

Desde o início da divulgação do seu álbum, a cantora deixou bem claro que ele seria bem político e traria temas muito importantes em suas faixas, como o racismo e o feminismo, o que foi o suficiente para tornar o CD num dos mais aguardados do ano, pelo menos por um tempo, até a cantora esquecer a divulgação do mesmo no churrasco.

Eis que no dia 20 de outubro o "AFRODITA" finalmente chegou aos nossos ouvidos, preenchido por 11 faixas, sendo uma em parceria com Caxxandra e outra com Tanusha. O álbum trouxe consigo uma sonoridade mais urbana, mesclando de vez em quando com o R&B, deixando os seus debates ainda mais emblemáticos, porém, até que ponto isso é bom?

01. Guetto Voice

O disco é aberto pela introdução "Guetto Voice", escrita por Lexie Stone e produzida por Luzon. A faixa começa com a voz de uma mulher falando sobre a importância do Hip-Hop na cultura negra, enfatizando o poder que esse estilo tem no movimento. E então Zahara finalmente começa a cantar, apenas reforçando tudo o que a mulher já havia dito nos primeiros quinze segundos da música.

"Guetto" é uma faixa rápida, porém, ainda assim, importante para o disco ao falar sobre uma das inúmeras partes de uma cultura que é muito esnobada pela nossa sociedade. Além de ser um início leve para o disco, preparando o público para o que vem logo a seguir.

02. Pele Preta

Seguindo, temos a faixa mais conhecida do material. "Pele Preta" é uma faixa agressiva, soando como um grito de guerra de Zahara contra o racismo que ainda existe, embora velado, dentro do nosso país. "Eu sou a carne mais barata do mercado, aquela que você não quer se sentar ao lado".

Escrita por Zahara Luzon, "Pele Preta" pode ser considerada a faixa mais emblemática de sua carreira. Porém, toda a militância de Zahara cai ao chão quando se descobre que a canção que deveria soar como um afronte ao racismo foi produzida por uma branca que já expressou seu preconceito através de suas músicas. Sim, estamos falando de Gabi e sua "Pele Branca", single do seu álbum "Wild Heart" de 2014, que causou muita revolta na época. Seria Zahara uma ativista de telão?

03. Senzala Moderna

Com a evolução da tecnologia e o surgimento das redes sociais, o racismo se tornou ainda mais explícito por pessoas intolerantes que escondem seu preconceito atrás da desculpa esfarrapada da "liberdade de expressão". "Senzala Moderna" fala exatamente sobre isso.

A composição de "Senzala" é fortíssima e sua instrumental traz a agressividade necessária para o embate que Zahara faz, não só aos racistas, mas também as autoridades que ainda tratam esses casos degradantes como algo comum, com penas tão pequenas que muitas vezes nem são cumpridas até o final. Certamente, é um grande destaque do álbum, graças a sua instrumental.

04. Hino Nacional

Saindo um pouco da temática racial, Zahara volta a afrontar o governo e o seu descaso com a população. "Hino Nacional" fala sobre a precariedade da educação pública brasileira e sobre os esforços dos políticos em deixar o povo o mais alienado possível, para que eles não criem um senso crítico e continuem votando neles.

Apesar da composição ser uma das mais fortes do disco, a instrumental - que, inclusive, lembra bastante a de "Pele Preta" - e sua produção tornam a faixa numa das mais monótonas do disco, causando um dos maiores desperdícios do mesmo, pois, graças a letra, essa poderia ter sido um dos maiores destaques do material.

05. Olhos Vazios (ft. Tanusha)

Voltando à temática racial, em "Olhos Vazios" Zahara fala sobre a falta de representatividade dos negros em produtos infantis, comerciais, papéis de destaque na televisão e outros meios que sempre privilegiaram pessoas brancas.

Escrita e produzida por Luzon, "Olhos Vazios" é um dos grandes destaques do disco, a parceria com Tanusha foi essencial para que a faixa não acabasse monótona na voz de uma única cantora durante todo o seu percurso. A composição é outro ponto forte da faixa, ao lado de sua instrumental, bem diferente do que nos fora apresentado até aqui. Ponto pra Zaharinha.

06. A Outra Mulher

Como nem só de hip-hop vive o homem, "AFRODITA" também tem espaço para umas farofinhas, porém, com conceito. "A Outra Mulher", apesar do nome, não é disstrack para a The Other Woman, pelo contrário, a faixa fala sobre a sororidade, tão falada, porém pouco praticada pelas mulheres. Na faixa, Zahara descobre que seu marido tem uma amante, mas, ao invés de se revoltar com a mulher - que não sabia que ele era casado - se une a ela e torna-se sua amiga. "Eu sei quem você é, a outra mulher do meu marido, mas não vou raspar seu cabelo, eu serei seu ombro amigo [...]".

A faixa é um dos grandes acertos do disco, uma instrumental mais comercial com a composição chiclete que sua sonoridade pedia, porém, ainda assim, sem fugir da temática do disco, e uma produção impecável. Seria uma ótima aposta para single no futuro.

07. Catequização

Prosseguindo, temos "Catequização", faixa onde Zahara fala sobre a Igreja Católica e a sua vontade em "catequizar" os negros, fazendo com que eles entrem em sua religião e abandonem sua cultura que, na opinião dos católicos, "é coisa do demônio".

Com "Catequização" acontece algo semelhante ao que aconteceu com "Hino Nacional", porém, desta vez, o erro não foi a instrumental - que é bem marcante, por sinal - e sim sua composição, que, ao se esforçar em explicar a história da relação conturbada entre a igreja e os negros, se torna muito didática e acaba por estragar a artisticidade da canção.

08. Incômodo

Finalmente os refrescos. A capoeira, criada por escravos brasileiros, por muitos anos foi ridicularizada pela população por ser uma parte da cultura negra, e, em "Incômodo", Zahara resolve trazer isso à tona. "O que te incomoda tanto? Eu cantar sobre indignação, ir à rua pelos meus direitos ou mais um negro morto no telão?".

Com o arranjo musical totalmente voltado para a capoeira, "Incômodo" acerta em cheio em sua composição e produção, tornando a faixa no ponto mais alto do disco, apesar de ser curtinha. Ponto pra ativista de telão.

09. Sacrifício

Falando sobre a sexualização da mulher negra, "Sacrifício" relata a história de uma mulher que foi estuprada por um homem branco, mas que não recebe o apoio da população que acredita que ela está mentindo, simplesmente pelo fato de ser negra.

A faixa trata o estupro de forma metafórica e bastante agressiva, com os backing vocals das outras pessoas dizendo: "Ela só pode estar mentindo, não é mesmo? Talvez, quem sabe, essa negrinha...", apenas reforçando o quanto a palavra da mulher negra é ignorada pela sociedade. "Ele realmente conseguiu me calar", finaliza Zahara, dando um ótimo gancho para a próxima faixa.

10. Cura (ft. Caxxandra)

Após ser violentada, Zahara começa a cogitar aceitar ajuda de pessoas que não querem o seu bem de fato, apenas querem deixar a história debaixo dos panos e tentam convencê-la de que suas palavras não serão ouvidas pela sociedade. "Talvez eu precise aceitar a sua ajuda, talvez eu precise aceitar que você não muda. Tenho que enxergar que você tem a alma suja e que preciso acreditar que eu sou a minha própria cura".

"Cura" é uma faixa mais emocional, visando mostrar a fragilidade dessa mulher que por tanto tempo deu sua cara a tapa contra o racismo, gritou em nome de um povo, mas que não é feita de ferro. Demonstrar os dois lados dessa personagem é importante para entender o quão tóxico pode ser o racismo na vida de alguém, o que continua expresso na próxima faixa.

11. Prazer, Meu Nome É Morte

Passada a tragédia, Zahara volta para sua casa e acredita estar lutando por uma causa sozinha, pois não recebeu nenhum apoio, mesmo após ter sido vítima de um ato de violência, o que a faz pensar em suicídio. "Estou vivendo em um lugar que não é tão seguro assim, para todos e para mim. Mas ninguém me vê reclamando, ninguém me vê chorando, e também me lamentando, pois só existe eu aqui".

Numa das melhores faixas do álbum, Zahara encerra o disco enfatizando o quão degradante o racismo é na vida de alguém e todas as consequências que ele pode causar em uma pessoa, principalmente se ela estiver sozinha lutando contra esse sistema tão opressor e desacolhedor em que nós vivemos.

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Falar sobre racismo num mundo virtual pode não parecer muito importante, mas quando você se lembra que essa comunidade é predominantemente branca, o álbum de Zahara Luzon se torna extremamente necessário. "AFRODITA" é um álbum que caminha por todas as vertentes de preconceito, seja ele racial ou de gênero, e apresenta todos os males que esses prejulgamentos trazem a quem os sofre. O que o torna, liricamente, um álbum coeso. 

Zahara acertou em cheio em investir em um tema que, infelizmente, ainda é considerado como polêmico pela sociedade e falar sobre tudo o que ele engloba, mas, errou ao se associar à pessoas publicamente conhecidas como racistas para trabalhar na composição e produção do seu material, com tantos outros nomes com quem ela poderia ter se afiliado e criado um material mais sincero. O peço dessas parcerias bate a porta em faixas como "Hino Nacional", "Catequização" e muitas outras que, apesar de falarem sobre temáticas tão importantes, pecam por serem muito didáticas e acabar tornando o álbum em uma grande aula de história. Erros que poderiam ter sido corrigidos caso a cantora tivesse colaborado com pessoas que realmente sabem do que estão falando e dão valor ao movimento.

Apesar dos apesares, "AFRODITA" permanece sendo um bom álbum, cumpre o que prometeu e nos traz ótimas mensagens sobre a cultura negra e alertas importantes sobre o racismo e o feminismo através de suas letras, provando a habilidade de Zahara como compositora e nos deixando ansiosos para o que ela ainda irá nos trazer.